insistência amarela


acordei ao som
de vassouras frenéticas
sobre o carpete amarelo
que cobria o parque

a manhã avançava
e a paisagem des-amarelava
limpeza bruta
sem poesia

mas... temporária
o tempo decide ventar
e venta amarelo
em chuva amarela

acompanho o vôo
dos tons de amarelo
na despedida dos galhos
no despir das árvores

o amarelo insiste
em se amarelar
em amarelar o outono
em criar amarelidão

aproveito a oferta
me admiro em admirar
essa beleza triste
de silêncio e de melancolia

Berlim, 25 de outubro de 2012

amarelo-outono



através da janela,
praça, bancos,
 folhas, caminhos...
a paisagem se amarela

vejo pela janela,
folhas desgarradas de galhos,
que voam como se chovessem
chuva amarela

folhas aterrissam:
amarelam o parque,
sonorizam os passos dos passantes
que se amarelam ao passar

amarelam a paisagem
que meus olhos,
amarelados, admiram
através da janela

amarelo sem luz do sol
e com o cinza do céu,
se acinzenta...
amarelo nublado

a claridade do amarelo-outono
destaca do cinza-outono
a morbidade
e inaugura um ritual de passagem

o vento sopra
o amarelo voa
o vento passa
o amarelo pousa

o amarela acarpeta o solo,
o tapete amarelo
cobre a superfície
que se amarela

da janela,
também me amarelo
no mesmo tom
do tempo que passa lá fora

tom de amarelo
que prenuncia tempo marrom
dia que se põe amarelado,
vai renascer amarronzado.

Berlin, 22 outubro de 2012

TEMPO DE LINHAS


O tempo me desenha novas linhas

Sou eu... não sou mais eu

Sendo outra, sou ainda eu mesma

As novas linhas... desenham outra de mim

Me vejo de fora

A mesma, renovada nas linhas do tempo

Linhas que me escrevem,

Descrevem a história de mim

Linhas de tempo, tempo de linhas...

De novas linhas

...onde escrevo os versos da maturidade

Essa sou eu... nova saída de dentro de mim

Antiga... guardada em mim

Eu ... desenhada com novas linhas

Linhas antigas de mim...

Sem essas linhas... quem seria eu?

Linhas que me emocionam

Me impulsionam

Também assustam, também intrigam,

Também escutam... linhas de escuta...

Linhas de versos... reversos de mim...

Barcelona 23 Nov 10

CINZA

No céu, o cinza pesa
Tonalidade uniforme e sólida
O ar parado e concretizado
Me solidifica

Fica... fico qual estátua
Estatelada na cama
Esperando o chamado do sol
Que não chama

Minha alma de galinha ainda
Aguarda a luz para o cacarejo
Cinza no quarto, na sala, na cozinha
No espelho acinzentado, me vejo

Cinza! Cinza! Cinza!
Todas as cores são lindas
Mas qualquer uniformidade
Desarmoniza...

Para resistir
Me visto em cores
E me aventuro
Onze graus afora

Frio ventado, vento esfriado...
A paisagem acinzentada
Embute detalhes e formas
Na moldura mono-cinza-cromática

Corro em busca de luz,
calor, ação, energia
Me movo e afeto o ar,
que afetado me contagia

Correndo atravesso a névoa
E repinto meu olhar,
que recomposto dos cinzas,
Vê cores onde não há.

É preciso investir e investigar
Dentre as opções de mim
Qual pode se harmonizar
Com esse lado cinza de Berlim...

Dois homens carregam

Estou no Aterro do Flamengo.
Short, camiseta, tênis. Sol, mar, Pão de Açúcar.
No Rio, faço corridas diárias, ou quase, entre Botafogo e Catete.
O desafio é correr sem perder de vista o prazer da vista mais linda da cidade maravilhosa: a Baía de Guanabara!
Atenção ao mar, louvor ao sol, amor ao céu e gratidão à vista.
Corro Feliz!
Dentro da imagem emoldurada pelo meu olhar, avisto dois homens. Homens velhos que caminham em minha direção.
No Aterro, todo mundo pode correr, caminhar, andar, parar. Se cuidar e se largar. Fashion, marombado, fofinho, magricela ou desocupado. Todo mundo pode. O Aterro democratiza.
Esses dois homens são velhos e carregam.
Carregam algo. Cada um o seu volume. Não identifico o quê.
Me chamam a atenção, e eu os observo. Se incluem no meu foco.
Andam lado a lado, no mesmo ritmo sem poder evitar um ao outro.
Por certo, não se conhecem. Não se olham, nem se comunicam.
Mas como têm o mesmo ritmo, não podem se evitar.
Os dois são velhos. Os dois carregam.
Um é negro. Outro é branco.
Os dois carregam.
O negro parece carregar o peso da vida.
O branco, um certo orgulho pela conquista do descanso merecido.
Os dois caminham.
O negro como quem não tem rumo.
O branco como quem cuida da saúde.
Os dois carregam.
Lado a lado, no mesmo ritmo.
O negro meio sem perceber a presença do branco.
O branco meio incomodado com a proximidade do negro.
Os dois carregam. O quê?
Um saco plástico cheio de lixo, cheio de resto, cheio de vazio.
Um cachorrinho bem cuidado, de pêlo branco como algodão.
O saco preto. O cachorrinho branco.
O velho negro. O senhor branco.
Um ao lodo do outro. No mesmo ritmo.
Caminham por estradas paralelas que riscam histórias distintas.
O caminhar dos dois diz muito sobre a cidade.
Enquanto caminham e carregam, contam nossa história.
Eles são a cidade. Estamos no Rio!

Eu e as Cidades

Entre Berlim e Rio
Entre Rio e Berlim
Vendo Berlim do Rio
Vendo Rio de Berlim

Privilégio
Sorte
Susto
Sacrilégio

Duas cidades
Duas moradas
Vôos, caminhos
Pontes, estradas

Uma assim
Outra assada
Ambas, mutuas
Mistas, muitas

Vice e versa
Verso e conversa
Texto e contexto
Multi e culti

Meio lá, meio cá
Com elas me encanto
Me perdendo nelas,
Me encontro!